Bioshock, o primeiro, será eternamente lembrado como um dos melhores jogos dessa geração, e certamente um divisor de águas no gênero de jogos de tiro. Foi um jogo que surgiu inicialmente sem grandes expectativas ou pretensões e conseguiu surpreender positivamente a todos ao conferir aos jogos de tiro em primeira pessoa, notórios e famosos por sua qualidade gráfica e superficialidade de trama, uma dignidade até então inexistente. Foi o primeiro, e ainda é um dos poucos jogos dentro desse gênero, que foi capaz de aliar as qualidades típicas e esperadas de um jogo de tiro, como a qualidade técnica dos gráficos e a ação intensa, inseridas numa direção de arte primorosa, construída sobre uma arquitetura e estética de mundo construída inteiramente para ele, e inserida dentro de uma história que cativa tanto pela sua imersão quanto por sua complexidade.
Jamais se imaginaria, antes de Bioshock, que jogos de tiro poderiam ser um gênero no qual teses políticas e filosóficas poderiam ganhar vida e ser exploradas. Jamais se imaginaria que um jogo de tiro seria capaz de surpreender o jogador não pela dificuldade ou desafio de suas fases ou oponentes, mas pelos seus méritos de enredo.
Bioshock: Infinite, contudo, supera seu famoso antecessor.
E supera em praticamente todos os aspectos de análise, o que é um feito quase inacreditável.
Do ponto de vista da parte técnica dos gráficos, Infinite é beneficiado não apenas pelo próprio aprimoramento na capacidade de programação e de tecnologia que quase 6 anos de diferença entre os títulos permite à sua desenvolvedora, mas também porque o próprio ambiente da cidade de Columbia, em Infinite, uma cidade voadora, permite uma coloração e uma diversidade de elementos gráficos muito maiores que a submersa e arruinada Rapture permitia no primeiro Bioshock.
O jogo ainda não consegue disfarçar a linearidade na sua progressão, mas os espaços abertos de Infinite conferem a ele pelo menos duas vantagens comparativas com relação a seu antecessor.
Em primeiro lugar, porque elimina a sensação claustrofóbica que Rapture (a cidade submersa do primeiro jogo) precisava impor ao jogador, até por sua natureza, e com isso dá a sensação de maior amplitude e variedade de exploração (mesmo que, em alguns casos, a sensação seja falsa).
Em segundo lugar porque dinamizam a utilização do cenário. Em uma cidade submersa, as interações acontecem, em sua esmagadora maioria, apenas horizontalmente. Já em uma cidade aberta, o componente vertical (altura) acaba conferindo uma diversidade de abordagens e estratégias que seriam impensáveis no primeiro Bioshock.
E a própria dinâmica de jogo foi aprimorada, como consequência disso. Não só pela existência de uma parceira que existe apenas para auxiliar (e não atrapalhar, como ocorre em diversos jogos que incluem esse componente), como também porque embora o primeiro Bioshock tenha procurado permitir que o meio ambiente serviço de acréscimo à dinâmica de combate, o novo título aprimora ainda mais esse conceito, aliando não apenas a utilização de armas convencionais e poderes supernaturais já presentes no anterior, como multiplicando os elementos de cenários que podem ser utilizados pelo jogador como alternativas de abordagem para cada missão. O fato de raramente o jogo exigir uma “solução correta” para cada confronto torna ainda mais satisfatória a experiência do jogador de improvisar e exercer a liberdade de escolher entre as diversas alternativas que o jogo oferece.
Mas, novamente, é no enredo e na história subjacente que Infinite brilha.
Tanto no primeiro Bioshock quanto em Infinite, a Irrational Games procura explorar as consequências que o extremismo ideológico pode levar. E sempre usando para isso elementos culturais e ideologias muito presentes no universo norte-americano. No primeiro Bioshock, a Irrational se debruçou sobre a filosofia objetivista e seu filho pródigo, o anarco-capitalismo, para demonstrar a ascensão e queda de uma sociedade extremada por tais valores.
Já em Infinite a Irrational aborda um pensamento quase que oposto ao explorado no jogo anterior. Enquanto em Rapture vigorava o materialismo e o individualismo que rejeitam os valores sociais e espirituais, em Columbia explora-se o fundamentalismo religioso e o “excepcionalismo” norte-americano (doutrina patriótica segundo a qual os EUA constituem uma nação sem precedentes, calcadas em valores e qualidade superiores ao de qualquer outra nação na história). Onde antes (no primeiro Bishock) havia uma sociedade que rejeitava aos deuses e seus profetas, agora há uma que venera seus heróis como santos e se imagina guiada por um profeta. Onde antes imperava o capitalismo e a livre concorrência, agora imperam os monopólios dos amigos do rei. Onde antes havia anarquia e bandidagem, agora há uma sociedade ordeira, vigiada e controlada com mão de ferro.
E Infinite ainda possui uma qualidade acidental, mas fundamental: enquanto em Rapture tudo o que o jogador encontrava eram ecos de um mundo que já estava arruinado e não existia mais, em Columbia estamos inseridos em uma sociedade muito viva, com todo seu auge e crise.
E isso tudo apenas para servir de pano de fundo para uma história que se tornará ainda mais complexa com a introdução de elementos teóricos de física quântica, viagens no tempo e no espaço e, naturalmente, um questionamento sobre as próprias raízes da violência.
Os jogos de tiro, uma vez mais, são alçados a outro nível.
Naturalmente, isso não significa que o jogo seja perfeito. Mas suas qualidades são tamanhas que “apequenam” seus defeitos. É possível citar alguns, contudo:
A modelagem facial dos personagens é inconstante, especialmente quando se encontram personagens mortos, em vários casos há a nítida sensação de que parecem manequins de plásticos e não personagens aos quais tenha se procurado dar vida.
Além disso, por algum motivo inexplicável o personagem do jogador não projeta sombra. Talvez de forma a que esse componente gráfico sempre complexo não prejudicasse a fluidez do jogo, mas prejudica a imersão quando seu personagem não parece ter qualquer materialidade no jogo. É compreensível o esforço que o jogo empreendeu em evitar lidar com reflexos do personagem, porque via de regra os jogos tem grande dificuldade de reproduzir esse componente adequadamente, mas a ausência de sombra cria sempre a sensação de que “alguma coisa” não está certa em cada cena.
E, talvez o mais grave, principalmente por se tratar de um problema acidental dentro da maior qualidade do jogo, Infinite aposta na sempre inglória tentativa de abordar as viagens no tempo e no espaço, que inevitavelmente produzem dilemas e contradições que o jogo, assim como todos os livros e histórias escritas sobre a temática, jamais conseguiram explicar adequadamente.
Independentemente, contudo, das pequenas críticas acima, cuja pontualidade apenas realça as qualidades gerais do jogo, Bioshock: Infinite dá mais um salto no gênero dos jogos de tiro, e desafia a concorrência a atingir a sua altura.