Sobre a questão de negligenciar os jogos first party, resolvi desenvolver melhor pra pintar um quadro geral da ideia. É longo, mas vamos lá.
Quando a Microsoft decidiu entrar no mercado de videogames pra valer, lá em 1998, ela sabia que enfrentaria um páreo duro contra duas gigantes da indústria (Nintendo e Sega) e uma novata que estava voando (Sony). Por isso, além de desenvolverem um hardware potente, eles sabiam que iriam precisar de outros diferenciais, e investiram bastante em estúdios first party e jogos exclusivos. Compraram a FASA em 1999, Bungie em 2000, Ensemble em 2001, Rare em 2002, criaram a XSN em 2000 (fazia jogos de esportes, depois venderam pra 2K em 2005), Lionhead em 2006, e isso fez com que o
Xbox e o
Xbox 360 tivessem uma lista de exclusivos de peso muito grande, especialmente entre 2001 e 2007, tanto de estúdios internos quanto de parcerias: Halo, Star Wars: Knights of the Old Republic, Ninja Gaiden, Fable, Forza Motorsport, Gears of War e Mass Effect, pra ficar só em alguns grandes. Também conseguiu exclusividades definitivas ou temporárias de grandes jogos com estúdios third, como The Elder Scrolls III: Morrowind (esse foi exclusivo de
Xbox), ou temporárias como The Elder Scrolls IV: Oblivion ou BioShock no
Xbox 360.
A partir disso, começaram alguns erros que, na época, até foram acertos, vou dividir em tópicos porque tem coisas que se cruzam.
Em 2006, a Microsoft já estava com o
Xbox 360 na rua há mais de um ano quando a Nintendo lançou o Wii, que se provou um estouro de vendas e popularidade por conta de uma nova forma de jogar, com seus controles de movimento. Isso acendeu a luzinha para a Microsoft olhar com mais atenção para um projeto que começou em 2005 quando a PrimeSense começou a projetar um dispositivo que capturasse os movimentos do corpo sem a necessidade de um controle, mostrando esse projeto na GDC de 2006 e, a partir dali, trabalhando próximos da Microsoft para o desenvolvimento do Kinect - detalhe: a Microsoft chegou a trabalhar também com controles de movimento tipo o Wii Mote e PS Move, mas acabaram desistindo da ideia porque acreditavam que não deveria haver uma barreira entre o jogador e o jogo. Com isso, além de destinar muitos recursos, o
Xbox também teve que redirecionar parte da grana para criar e financiar jogos para esse sistema - isso começou lá em 2008, quando o Kinect ganhou luz verde dentro da empresa. E é bem curioso que a narrativa de "
Xbox só tem Forza, Gears e Halo" começou a ganhar força a partir de 2011, três anos depois disso.
Comercialmente, o Kinect foi um sucesso, rendeu muito dinheiro para a Microsoft e deu uma revigorada no
Xbox 360 - mas, por outro lado, começou a passar para o mercado uma mensagem errada, que a empresa iria se voltar mais para jogos casuais, em um momento onde a Sony começava a consolidar a sua estrutura first party. Isso é importante lembrar porque a PlayStation Studios hoje é vista como uma força, mas ela passou por um processo de muita maturação entre 2000 e 2010, com os primeiros resultados práticos de excelência começando ali por 2008/2009, há 12 anos. Junto a isso, a Microsoft seguiu apostando no Kinect no início do
Xbox One, mesmo tendo como exemplo de alerta a Nintendo com seu WiiU em 2012, que foi um fracasso e não conseguiu repetir o mesmo sucesso do seu antecessor, afinal, é difícil convencer o público casual que nunca havia se interessado por um console (e que estava satisfeito com o seu aparelho atual, Wii/Kinect) de que ele precisaria comprar um novo e melhor. Com isso, a Microsoft perdeu um tempo precioso, não desviando o foco, mas dividindo a sua atenção.
Agora, vamos voltar lá pra 2007 novamente, pra ver outra faceta dessa história, porque foi por lá que a força first party da Microsoft começou a se quebrar - e esse período foi até ali em 2016. Pra ficar com os mais conhecidos (tinham outros que foram fechados ou incorporados em outras estruturas), em setembro daquele ano, fecharam a FASA (que havia desenvolvido Mechassault, Crimson Skies, Mechassault 2 e Shadowrun para os consoles
Xbox). Em outubro, anunciaram o rompimento com a Bungie (esses dispensam apresentações). Um pouco antes, no final de 2006, dissolveu a Digital Anvil (Brute Force). Em 2009, foi a vez da Ensemble (Age of Empires, Age of Mythology, Halo Wars) ir pra banha. A Twisted Pixel (Comic Jumper, Splosion Man), que havia sido comprada em 2011, voltou a ser independente em 2015. A Press Play foi comprada em 2012, mas fechada em 2016. Assim como a Lionhead, que também foi fechada em 2016.
Nessa mesma janela de tempo, o
Xbox também teve diversos projetos grandes cancelados. Segundo rumores, o MMO de Halo comeu quase $90 milhões; Fable Legends, outros $75 milhões. Stormlands (da Obsidian) também enfrentou problemas de desenvolvimento e mudanças de rumo por parte da Microsoft e quase quebrou o estúdio, e todo mundo sabe o que aconteceu com Ś̶̼̟̩͓̳̼̲̺͙͔͔̼̫̼̺̫̫͚͕͕͇͋͊͆͗̑͛͌́̈́́͗̂̂̕͜͝͝͝ͅc̷̢̨̹̳͈̮̳̝̝͖̘̣͔̝̝͒͋̿̍͂̿̈́͛a̷͔̜̬̰͖͓͔̦͉̖̗̠̱̦͚̒͗̊̊̐̃̐́́̋͐̿̓͑̀̑̆͒͝ͅl̵̨̙̝̱͔̞͖͓̼͎̘͉̯͇̫̭̓̒̿ę̶̢̛̛̩̦̬͇͕͚̠̬̫̪̻̼̪͉̼̱̤͛̃̔̊̂͐̓̽̈̿̅̀͒̀̓́̕̕̕͘͜͜͜͝͠b̴̧̲̘̘̟̠̺͖̟̽̓́̚͘o̷̢̠̻̱͌̓̂͋̇̓̑̋̿̒͑͌͌̈́̀̈́͋̚̚͠͝͠͝u̸̧̻͈̠͕̳͖̤͙̠͈̪̰͈̺̯̼̠͈͆̽́͌̉́͊͛̚͜͜ṅ̵̨̛̝̹̪̤͎̥͎̱̼͇̝̭̙͝ͅḓ̷̢̢̳͖̖̠̣̲̖̣̖̱̜͍̮̙͍͇̤̊͐̆̈́̀̿̏̆̓̐̚͘͝, que também já deveria ter ali algumas dezenas de milhões investidos quando foi cancelado, além de outros casos que geraram controvérsias, como o reboot de Phantom Dust (que deu a treta lá que o trailer da E3 foi feito por uma equipe, sem que a desenvolvedora do reboot tivesse conhecimento, tendo que correr pra mudar vários assets do jogo). Assim, cancelamentos de projetos são bastante comuns na indústria e ninguém está livre disso, mas algo que aconteceu mais do que a média com a Microsoft é que alguns de seus projetos foram cancelados após anos de desenvolvimento e, pior, após serem mostrados para o público por anos, ou até após estarem disponíveis em estágios de testes para jogadores. Foi nessa época, inclusive, que começaram aqueles rumores de que a Microsoft estava apertando um pouco a mão com financiamento de jogos para o
Xbox, algo que até o Jez Corden relatou ter escutado - e que, convenhamos, é bastante plausível, já que uma empresa não vai botar dinheiro em projetos pra ver eles torrando grana sem gerar resultados.
Analisando todo o cenário, quando a poeira de tudo isso aí baixou, em 2017, a Microsoft contava com as seguintes equipes first party: 343 Industries, Mojang, Rare, The Coalition e Turn 10, além da Microsoft Studios Global Publishing. Cinco equipes de desenvolvimento e uma de acompanhamento de outras produções. Das cinco, quatro extremamente previsíveis: 343 Industries/Halo, Mojang/Minecraft, The Coalition/Gears of War e Turn 10/Forza Motorsport. Quem questiona a falta de exclusivos de peso em 2020 precisa olhar para esse ano (ou até antes), porque foi lá atrás que boa parte das decisões foram tomadas. A partir da metade de 2017, o
Xbox mudou de patamar: Spencer foi promovido a VP (foi nessa época mais ou menos que rolou aquela conversa "ou vai, ou racha" do Spencer com o Nadella, onde esse último questionou que não sabia se a Microsoft deveria estar na área de videogames, e o Spencer retrucou dias depois que, se fosse pra continuar, tinha que ser com tudo), lançaram o
Xbox Game Pass (e, poucos meses depois, anunciaram que todos os jogos first party estariam no catálogo no lançamento), compraram vários estúdios, criaram outros, encorparam praticamente todos eles. Dá até pra ficar chateado e perguntar por que não fizeram isso antes, e deveriam ter feito, mas a realidade é que não fizeram e não tem como tirar coelho da cartola se nem tinha cartola.
Quer dizer que tiveram só erros entre 2007 e 2017? Claro que não! Se o Kinect foi um sucesso mas teve seu impacto negativo, o mesmo pode se dizer do contrário. Em 2010, iniciou-se uma relação de parceria de sucesso com a Moon Studios e a Playground Games (essa acabou sendo comprada em definitivo em 2018); em 2011, foi criada a Microsoft Game Studios Vancouver, que depois passaria a se chamar Black Tusk Studios e que hoje é a The Coalition; em 2014, assinaram um contrato de publicação com a Undead Labs (que também foi comprada em definitivo anos depois) para a franquia State of Decay; ainda em 2014, compraram a IP Gears of War, que era da Epic. Antes disso, firmaram parcerias que nos brindaram com Quantum Break e Sunset Overdrive, entre outros tantos jogos que a galera gosta.
É por isso, também, que o futuro se mostra bastante promissor para a
Xbox Game Studios. Pela primeira vez, eles contam com suporte total da Microsoft como um pilar central da estratégia de futuro da empresa. As aquisições dos últimos anos fortalecem a Microsoft como uma das principais desenvolvedoras de jogos da indústria, e os planos do
Xbox enquanto plataforma são bastante claros e transparentes.
Então, pode ser um pouco chato não termos um
flagship atualmente no
Xbox Series X|S, e não é passar pano nem nada, mas é tudo uma questão de causa e consequência. Se não estamos colhendo muita coisa hoje, é porque pouca coisa foi plantada lá atrás.
Em contrapartida, dá pra perceber a olhos vistos o quanto o
Xbox vem plantando nos últimos anos. O resultado disso vai vir naturalmente com o tempo.