O Facebook é uma rede social interessantíssima pra se estudar a dinâmica do comportamento humano. Principalmente, é uma rede muito boa pra se perceber como se constroem as relações de status e poder na sociedade, já que muitas das postagens dessa rede carregam essa conotação, e na maioria das vezes, aqueles que postam sequer tem ciência disso. Quando se para pra observar o Facebook por muito tempo, se tem uma sensação entendiante de de ja vú e repetição, mas com um pouco mais de cuidado e olhar, pode-se perceber alguns padrões interessantes, e alguma reflexão sobre eles nos leva a conclusões bem interessantes. Um tipo de postagem muito recorrente na minha timeline, por exemplo, vindo majoritariamente,embora não exclusivamente, da parte de rockeiros, são as postagens da
forma “o meu gosto é muito melhor que o seu”.
É invariável, ao menos uma vez por dia leio algo assim, seja de rockeiros denegrindo o funk, os “coloridos”, Justin Bieber, música eletrônica, pagode, etc...enfim. Elas vem nas mais variadas formas, cores e sabores. As vezes são agressivas, como a foto ao lado, e as vezes são brincadeiras mais inofensivas. Também não se resume ao rock. Já vi fotos de gamers comparando o seu gosto por videogames ao gosto dos maconheiros de fumar maconha (?!), filmes cults em detrimento a filmes “blockbusters”, livros cultos em detrimento a livros de massa...enfim, a lista continua. Até aí, seria só mais uma expressão humana, talvez uma leve brincadeira e uma tiração de sarro. Mas o mais estranho na verdade é que essas pessoas realmente acreditam que suas comparações são genuínas, i.e, elas realmente acreditam que o “mais correto” é ouvir rock, não funk, ou que jogar videogame é uma atitude comparável a fumar maconha. A priori, me causou muito espanto essa necessidade de se denegrir a atitude de outras pessoas pra se exaltar o que se faz. Afinal, você realmente precisa falar que todos os outros estilos musicais são ruins pra curtir o seu estilo? Você realmente precisa comparar videogame a maconha pra gostar de videogame? Mas novamente, olhando e refletindo um pouco mais, tudo faz sentido.
O que eu desconsiderei na minha análise inicial e que me levou a essa grande confusão é o seguinte: vivemos em uma sociedade capitalista. Como quase tudo nesse tipo de sociedade, o status é uma competição. O que eu alego aqui, e vou demonstrar no decorrer deste texto, é que tais alegações de superioriedade de gosto musical, gosto cinematográfico e gosto literário não passam de uma forma de competição por status.
O rock em si tem uma queda drástica pelo underground. Desde a sua explosão na década de 60 o rock e o underground tem um grande caso de amor. O rock foi praticamente o hino de movimentos da contra-cultura e movimentos pioneiros dessa época. O rock também (especialmente o punk rock) era mais do que um estilo musical, mas uma revolução musical: era um estilo que vinha acabar com a elitização da música, tornando a execução da música de fácil e imediato acesso a qualquer pessoa. O lema do punk rock, com seu compasso simples em 4 por 4 era faça você mesmo. Não é atoa que as músicas do punk rock são de execução muito simples e podem ser tocadas por qualquer grupo de adolescentes com os instrumentos adequados na garagem de casa. Assim, muitos que criticam o punk rock por ser um estilo musical “pouco virtuoso” e “simplório” na verdade não entenderam bem o espírito da coisa: ele foi criado para ser simplório, pra ser simples. O que se pode criticar talvez é esse ideal da música popular como objetivo musical. Mas essa é outra discussão.
Desde então, o rock sempre foi associado a contra-cultura a subversão, a desobediência civil, a revolta social. De fato, é essa a temática de muitas músicas do estilo. Dos Beatles à Gun’s’n’Roses, o tema de revolução e inconformismo é muito presente. Essa temática naturalmente se traduz no comportamento e na mentalidade de muitos que escutam esse estilo. Punks, beatniks, hippies, grunges, góticos, hipsters, rockeiros...são todas subculturas que tem um problema em se conformar com o sistema. Ao menos, é isso que eles imaginam que seja o caso. O pensamento comum das contra-culturas se parece mais ou menos com isso: todas as instituições interconectadas do mercado precisam das pessoas conformadas para poder vender a maioria de seus produtos para a maioria das pessoas. A mídia, através de publicidade, trabalha para atingir uma sociedade homogeniezada, em harmonia com seus interesses. Para escapar do consumismo e da conformidade, você deve dar as costas e ignorar a cultura padrão mainstream. Os grilhões assim cairão, a máquina vai falhar, o véu vai se dissolver e você vai poder enxergar o mundo pelo que ele é. A natureza ilusória da existência chegará ao fim, e você poderá, enfim, ser real. A grande ironia e o grande paradoxo é que existe alguém lucrando com isso.
Pense no esteriótipo típico do punk: jaqueta de couro, spikes e coturno. Oh, de onde ele tirou essas roupas? Alguém as produziu, certamente. Cada inconformado que surge no mercado gera um nicho, que é rapidamente preenchido por emprendores e pessoas interessadas no lucro, alimento novamente o sistema. Nas palavras dos filósofos Joseph Health e Andrew Potter, em seu livro “Nation of Rebels” (2004) o sistema não dá a mínima para o conformismo. Muito pelo contrário, o sistema triunfa e se constrói com base na busca pela individualidade de seus integrantes. Ao tentar criar um gosto distinto e refinido, para se escapar da cultura pop e das massas, está se justamente alimentando o mesmo mecanismo que produz a cultura pop e o entreterimento em massa.
Por exemplo, digamos que há uma banda muito boa na sua vizinhança. Eles não tem nenhum contrato de gravação ou álbum gravado. Eles simplesmente tocam em eventos alternativos e bares, e o som deles é ótimo. Você divulga e conta a todos sobre o trabalho deles a medida que eles constroem um público decente. Logo, eles gravam um álbum que vende o suficiente pra que eles possam ter sustento apenas da música, conseguindo se demitir de seus trabalhos regulares. Esse álbum então angaria mais público. Logo logo, eles tem um grande público, conseguem um contrato de gravação e conseguem tocar na rádio ou na televisão. Agora, eles super faturaram. Então você os odeia. Você abandona a banda e parte em busca de alguém mais autêntico, e o ciclo se reinicia de novo. Essa é a bomba da qual artistas e músicos se lançam das profundezas do underground para a cultura pop mainstream. Ela nunca para, e ao passar do tempo ela fica mais rápida e mais eficiente.
No final da década de 90 e início de 2000 filmes com a temática inconformista eram bem comuns – Clube da Luta, Nação Fast-Food, Beleza Americana, The Corporation, etc. São todos filmes que criticam o que justamente se tornaram: ícones de consumo e estouro nas bilheterias do cinema. Talvez a intenção de seus criadores tenha sido uma crítica legítima ao sistema de consumo, mas ironicamente, esses filmes quando cairam no mercado geraram um lucro imenso na sua tentativa de criticar o tal consumismo. O caso do Clube da Luta é particularmente irônico: um filme que faz uma crítica pesada a ausência de individualidade e consumismo da sociedade...interpretado por Brad Pitt e Edward Norton, com um orçamento de doer os olhos. Foi também um enorme estrondo de bilheteria, faturando um total de cem milhões de dólares ao redor de cinemas do mundo todo. E principalmente: deixando todos que assistiram o vídeo ávidos por criticar o consumismo que acabaram de ser vítimas. Seus lamentos contra o consumismo foram consumidos. Cabem perfeitamente as palavras de Nietzsche aqui: “Quando olhamos para o abismo por muito tempo, o abismo começa a olhar para nós” (estou tão hiperster hoje que estou até citando Nietzsche).
O gosto refinado é a guerra de status da classe média. Os ricos competem com quantidade e qualidade de bens. Mas a classe média não pode comprar muito mais do que seu vizinho, porque simplesmente não tem dinheiro. O que ela não consegue compensar em quantidade, ela tenta compensar em refinamento de gosto. Você compete ao ter um gosto musical mais refinado, ao ter uma mobília ou uma decoração mais autêntica; e por conta disso as pessoas agora definem suas personalidades por quão refinido são seus gostos musicais, ou quão inteligentes, ou quão obscuras, ou quão irônicas e sarcásticas elas são. Você obtém status ao ter melhor gosto em músicas e em filmes, e por quão originais são suas roupas. Há centenas de milhares de cada item ou propriedade intelectual que você pode possuir, então você revela seu caráter autêntico e original através de como você consome.
Uma vez que tudo é produzido em massa, e frequentemente para uma audiência em massa, achar e consumir coisas que apelam para o seu desejo de autenticidade é o que move esses artistas e produtores do fundo do poço até os altos do sucesso – onde eles podem ser consumidos em massa.
Os hipsters então, são o produto direto do ciclo de indie, autêntico, obscuro, irônico, e inteligente consumismo. O que é por si mesmo irônico – o próprio ato de ir contra a cultura gera a próxima onda de cultura que as pessoas tentarão ir contra, gerando novamente uma nova onda.
Espere o suficiente, e o que uma vez foi cultura pop mainstream cairá novamente na obscuridade. Quando isso acontecer, ela se tornará novamente valiosa para aqueles em busca de autencidade e ironia ou inteligência. O valor então, não é intrínseco. E infelizmente, essa competição não está subordinada a como se constrói a sociedade. Competição por status é construída na personalidade humana a nível biológico. Pessoas pobres competem com recursos. A classe média compete com seleção. Os ricos competem com posses.
A relação de desgosto da maior parte dos rockeiros com o funk, por exemplo, não se trata de uma relação racional, considerada e ponderada dos “prós e contras” do rock em comparação com o punk. Trata-se na verdade de tentar mostrar o quão seu gosto é intelectualmente mais puro, mais refinado, mais original e autêntico, e não uma forma de música de massa para meros plebeus. Em suma, trata-se de tentar competir por status.
Isso não significa que não podemos lutar contra isso. Afinal, creio que todos concordaram que se achar um ser humano melhor por ter uma carro a mais ou uma casa na praia é algo completamente infantil, certo? E agora que você sabe que seu sentimento de superioridade por escutar rock, ou assitir filmes cults, ou usar aquela roupa descolada é nada mais do que a mesma expressão do mesmo sentimento infantil, que tal pensar um pouco mais na próxima vez que for compartilhar uma imagem denegrindo o gosto das outras pessoas, ou tornando o seu próprio gosto superior ao de outros?
Por Guilherme Tomishiyo em http://tropalanternaverde.blogspot.com.br/2012/05/cultura-pop-e-para-fracos-meu-gosto-e.html